A Música e o Ensino de Química:
Atualmente, uma pequena
incursão pela mídia permite
que identifiquemos alguns
temas que podem estar direta ou indiretamente
relacionados à Química,
como: aquecimento global, poluição
atmosférica, contaminação de rios
por resíduos industriais, derramamento
de petróleo ou óleo nos mares e
fabricação de armas nucleares. Boa
parcela dos temas insere a Química
como vilã e a considera uma das
grandes responsáveis por alguns
dos males da humanidade e do meio
ambiente. No entanto, são pouco
discutidas outras questões que norteiam
temáticas, como: consumismo
exacerbado, exploração cega dos
recursos naturais, questões políticas
e econômicas e a opção por determinado
modelo de desenvolvimento
econômico em detrimento de outro.
Como visto, não faltam assuntos
para serem abordados no âmbito da
sala de aula, sejam para discutir com
os alunos o papel da ciência na atual
sociedade ou para desmistificar alguns
temas que são tratados somente
na superficialidade e sob o interesse
de uma determinada classe social.
Defendemos que o conhecimento
químico pode ser construído pelas
crianças e pelos jovens de tal forma
que eles compreendam questões relevantes
e outras tangíveis ao dia-a-dia,
assim como possam contribuir para
modificar a imagem
sobre a Química, ou
seja, ela pode ser vilã,
mas também pode
ser “anjo da guarda”,
e isso está diretamente
relacionado à
maneira como é concebido
o seu uso.
Segundo Pinto
(Deyllot e Zanetic,
2004), no Ensino de
Física, e isso não é diferente para
o Ensino de Química, prevalece a
“Ciência do Outro” e quase nunca
“Nossa Ciência”, já que cozinhamos
com o microondas ou nos comunicamos
por meio do microcomputador
e, no entanto, estamos cada vez
mais afastados dos fundamentos
indispensáveis para a elaboração dos
conhecimentos e dos avanços científicos
e tecnológicos que permeiam
nosso cotidiano.
Entendemos ser fundamental aos
alunos compreenderem que a ciência
química tem tudo a ver com a cultura
contemporânea e que, por meio dela,
é possível estabelecer
um diálogo inteligente
com o mundo.
também, é imprescindível
buscar formas
para sensibilizar
os professores na
escolha de temas
que gerem no estudante
necessidade
em transcender a
informação e mergulhar
na busca do conhecimento como
forma de interpretar o mundo ao seu
redor. Isso pode ser feito utilizando
o conhecimento “científico” dentro
dos limites da ciência ou expressando
sentimentos e sensações sobre
a ciência por meio do imaginário e
da arte.
No âmbito dessas questões, não
devemos esquecer que os alunos, em
todos os níveis de aprendizagem, estão
imersos em novas tecnologias e novas
linguagens, decorrentes da ampla e
irrestrita difusão de informações.
Assim, como educadores, se não
reconhecermos a concorrência e,
ao mesmo tempo, resistências que
as tecnologias exercem no âmbito
escolar da aprendizagem, então,
como afirmam Almeida e Silva (1998),
“corremos o risco de ficarmos falando
e lendo sozinhos reclamando participação
e espírito crítico
nas nossas salas
de aula, enquanto
‘eles’ estarão vendo
televisão, imersos em
sons, walkmans, imagens
e videogames”
(p. 102).
A música e a letra
podem ser uma
importante alternativa
para estreitar o
diálogo entre alunos,
professores e conhecimento
científico,
uma vez que abordam temáticas com
grande potencial de problematização
e está presente de forma significativa
na vida do aluno.
De acordo com Ferreira (2002), “a
música pode nos auxiliar no ensino de
uma determinada disciplina, na medida
em que, ela abre possibilidades
para um segundo caminho que não é
o verbal” (p. 13), no qual seja possível
despertar nos alunos uma sensibilidade
mais aguçada na observação
de questões inerentes a ela. Concordamos
com Ferreira (2002) sobre a
potencialidade do recurso musical,
e foi nesse sentido que procuramos
escolher músicas que apresentassem
melodias e estilos sintonizados com o
gosto do público jovem para facilitar
a comunicação e o interesse.
Cabe salientar que exploramos
com maior intensidade o conteúdo
presente nas letras das músicas em
termos de linguagem, possibilidades
de analogias, contexto social, econômico,
tecnológico e cultural.
Desenvolvimento da proposta
Por acreditarmos nas possibilidades
que o recurso musical oferece,
ministramos três minicursos em
Encontros de Química e Ensino de
Química envolvendo alunos-docentes
e professores de Química, com a
finalidade de discutir estratégias e
refletir sobre as contribuições que a
relação entre o contexto da música e
a Química pode trazer para a melhoria
do ensino dessa ciência.
No início de cada minicurso, apresentávamos
aos participantes a questão:
Se perguntarmos a um aluno
do Ensino Médio: o que você pensa
sobre a Química –
quais seriam as possíveis
respostas? A
maioria argumentava
que as respostas
dos alunos seriam,
predominantemente:
química é coisa de
louco, muita fórmula
e memorização,
muito difícil, só serve
para passar no vestibular,
odeio química,
entre outras.
É essa imagem
da Química a que estamos nos referindo
e que pode ser encontrada em
letras de músicas populares, como a
intitulada Química, da Banda Legião
Urbana (Russo, 1987), que enfatiza
o ódio à Química, conforme mostra
o refrão: “Não saco nada de Física,
Literatura ou Gramática, Só gosto
de Educação Sexual, E eu odeio
Química”.
Ainda nesse contexto, consideramos
relevante destacar a música, certamente
pouco conhecida, de uma banda de
rock chamada Killi, cujo título é: NaCl,
escrita por um integrante não identificado
que possui formação em Química,
como apresentamos a seguir:
NaCl
Todo dia é a mesma coisa,
uma nova teoria, Linus Pauling
ou Arrhenius, pra aumentar
minha agonia.
Elemento que ioniza, é grande
ou baixa a entalpia, construir o
diagrama, pra acabar com
minha alegria.
Química!
Balancear a equação,
equacionar a reação, agitar
a solução, começar a combustão.
Sem contar com a tabela,
eu não consigo decorar, muito
menos entender, eu não vou
mais estudar.
Química!
Sódio, cálcio, hidrogênio,
magnésio, oxigênio, lítio, cloro,
tungstênio, alcalino e halogênio.
Dicromato de potássio, NaCl,
sulfato de cálcio, NaCl.
Química!
(Banda Killi, 2002).
A letra acima não expressa sentimentos
diferentes dos apresentados
na canção da Banda Legião Urbana,
dilacerando a imagem do Ensino
de Química, que dá ênfase à memorização.
Infelizmente, isso vem
se repetindo ao longo dos tempos,
conforme podemos identificar nas
palavras de Canetti (1989) que afirmou
ter um ou outro mau professor
e “[...] um professor desses fora, em
Frankfurt, o de química. Pouco me
sobrou de suas aulas, além das fórmulas
da água e do ácido sulfúrico
[...]” (p. 107)
Considerando que não há comunicação
desinteressada, cabe-nos uma
indagação: será que, apesar de todos
os nossos esforços como professores,
não prevalece, ao final da aprendizagem
referente à Educação Básica,
essa imagem pobre e caricatural da
Química para boa parcela dos estudantes
desse nível?
Em outro momento do minicurso,
perguntávamos, também, como os
participantes associavam a música
ao Ensino da Química e quase todos
sempre recordavam de “músicas”
ensinadas nos cursinhos pré-vestibulares,
todas com melodias de
interesse do público jovem.
Um dos participantes do minicurso,
de Jequié na Bahia, apresentou
um CD com várias músicas utilizadas
nas aulas de cursinho, do qual extraímos
o seguinte fragmento:
As cadeias carbônicas são
assim classificadas. Cadeias
abertas ou acíclicas e cíclicas
ou fechadas.
BIS
A música e a letra
podem ser uma
importante alternativa
para estreitar o diálogo
entre alunos, professores
e conhecimento
científico, uma vez que
abordam temáticas
com grande potencial
de problematização e
está presente de forma
significativa na vida do
aluno.
As abertas apresentam duas
ou mais extremidades. As fechadas,
ciclos ou anéis – veja que
facilidade.
As abertas ainda são normais
e ramificadas. A primeira com
duas pontas.
A outra mais de duas encontradas.
[...]
(Autor não identificado)
Vale ressaltar que são músicas
muito atrativas e buscam gerar interesse
e motivação, na medida em
que utilizam melodias conhecidas
e apreciadas pelo público jovem,
mas não apresentam características
que diferem das discutidas até o
momento.
Apesar de ser uma estratégia
muito utilizada por professores para
provocar a atenção dos alunos, é
momentânea. Além dos mais, essas
canções apresentam letras que
atuam no sentido de reforçar a visão
compartimentalizada do conhecimento
químico, resumindo-se apenas
como uma das formas de memorizar
determinados nomes ou conceitos.
Em um trabalho desenvolvido por
Pye (2004), percebemos que a proposta
apresentada pelo autor corrobora
esse tipo de visão, enfatizando o
ensino tradicional que tanto se critica.
O autor elabora paródias de músicas
que apresentam o conjunto melodia
e letra conhecida e apreciada pelo
público jovem como: Welcome to the
Gás Phase (Guns and Roses – , 1987)
e as utiliza como uma ferramenta
para facilitar o ensino de conceitos
de química. Contudo, a abordagem
sugerida por meio da letra é predominantemente
fragmentada, com
ênfase na memorização.
No trabalho que desenvolvemos,
procuramos mostrar como a música
pode ser utilizada para contextualizar
o ensino, dando maior significado
aos conceitos ou conhecimentos por
ela veiculados. Como reflexão inicial,
ouvimos a música e discutimos a
letra de: Movido a água (Assumpção,
1986), transcrita a seguir, no sentido
de decodificar seus significados e
potenciais de significação para problematizar
o ensino da química.
Existe o carro movido a gasolina,
existe o carro movido a
óleo diesel,
Existe o carro movido a álcool,
existe o carro movido a
eletricidade,
Existe o carro movido a gás
de cozinha.
Eu descubro o carro movido
a água, eu quase, eu grito,
eureka, eureka, eurico
Ai saquei que a água ia ficar
uma nota e os açudes iam
tudo ceará
Os rios não desaguariam
mais no mar, nem o mar mais
virar sertão.
Nem o sertão mais virar mar.
Banho? Nem de sol.
Chamei o anjo e devolvi a
descoberta para o infinito
Aleguei ser um invento inviável
só realizável por obra e
graça do santo espírito.
Agora eu tô bolando um carro
movido a bagulhos, dejetos,
restos, fezes,
Detritos fezes, três vezes estrume,
um carro de luxo movido
a Lixo,
Um carro pra sempre movido
a bosta de gente. (Assumpção,
1986)
Um dos aspectos a ser destacado
é que a letra e a música motivam,
despertam o interesse e podem proporcionar
uma discussão interdisciplinar,
uma vez que envolve questões
políticas, econômicas e científicas
em torno da utilização das diferentes
fontes de energia por meio de trechos
da letra da música como: porque a
água iria ficar uma nota ou os rios não
desaguariam mais no mar?
Ao mesmo tempo, ela suscita, do
ponto de vista da interpretação da realidade,
a necessidade de compreensão
de conhecimentos químicos. Por
exemplo, as reações de combustão,
por meio da análise sobre as possibilidades
de um carro ser movido a
água, pelo lixo ou mesmo por “bosta”
de gente. Para isso, é preciso ir além
da força de expressão da mensagem,
na extrapolação das idéias do compositor
para o contexto físico e social
no qual estamos inseridos.
Nessa situação, uma aula de Química
poderia começar de maneira lúdica,
procurando estimular os alunos com
a música. Para além desse estímulo,
estão as relações que podem ser
estabelecidas entre a química como
saber ensinado e a letra da música.
De maneira geral, essas composições
abordam temáticas que interessam aos
adolescentes – por exemplo, os carros
– ou outras questões como a relação
entre a queima de combustíveis e o
aquecimento global.
Ainda explorando o grande potencial
de discussão da letra apresentada,
poderíamos provocar reflexões
sobre fontes de energia alternativas,
problematizando questões como: é
possível um carro ser movido a lixo
ou mesmo a água?
Considerações finais
O avanço das discussões, das
expectativas e dos interesses em torno
da abordagem de conhecimentos
químicos, veiculados por meio de
algumas músicas, deixa claro que se
pode fazer um segundo caminho que
não o da aula expositiva, aumentando
a sensibilidade e a criatividade em se
fazer relações entre o contexto da música
refletido na letra que a compõe e
o conhecimento científico.
Conseqüentemente, a educação
científica passa a se situar como parte
da realidade dos “interlocutores problematizados”
e não apenas como
páginas a serem estudadas nos livros
didáticos, já que, segundo Freire (1983),
é fundamental à educação a “[...] problematização
do mundo do trabalho,
das obras, dos produtos, das idéias,
das convicções, das aspirações, dos
mitos, da arte, da ciência, enfim, o mundo
da cultura e da história [...]” (p. 83).
Por outro lado, a música apenas
como um instrumento de memorização,
sem sombra de dúvidas, perderá
seu potencial articulador que pode
combinar emoção, motivação e a
aprendizagem dos variados conhecimentos
que aproximam os saberes
do cotidiano, os saberes escolares e
o conhecimento científico.
As atividades desenvolvidas nos
remetem à conclusão de que a música
como abordagem de conhecimento
químico dificilmente é incorporada
nas estratégias de ensino mais recomendadas,
contudo, entendemos
que ela se revela absolutamente útil
na interpretação de mensagens do
cotidiano que têm significado científico,
social e tecnológico.
Dessa forma, esperamos que o
aluno, ao vivenciar uma experiência
como essa nas aulas, possa incorporar
a ciência como uma parte
integrante de sua cultura geral e, no
caso particular da Química, perceber
que ela pode transcender a simples
memorização de fórmulas.
Marcelo Pimentel da Silveira (martzelops@gmail.
com), bacharel e licenciado em Química, mestre
em Ensino de Ciências – Modalidade Química pela
USP, é docente do Departamento de Química da
Universidade Estadual de Maringá (UEM). Neide
Maria Michellan Kiouranis (nmmkiouranis@gmail.
com), licenciada em Química, mestre em Ensino
de Ciências – Modalidade Química pela USP, doutoranda
em Ensino de Ciências pela UNESP, é docente
do Departamento de Química da Universidade
FONTE: QUÍMICA NOVA NA ESCOLA A Música e o Ensino de Química N° 28, MAIO 2008
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